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Bancária escapou da morte e ficou 24h sem comer e beber até pagar R$ 144 por água e dois biscoitos

Por redação com O Globo 24/02/2023 20h08
Julia Arriero e Flávio Lobo ficaram presos em Sertão de Camburi - Foto: Reprodução

O feriado prolongado do carnaval à esperava a cerca de 700km de Brauna, cidadezinha de 4 mil habitantes no interior de São Paulo. A sexta-feira da folia, no sertão de Camburí, em São Sebastião, no litoral norte, foi de muita praia e nem de longe prenunciava a tragédia do fim de semana, que já tem 54 mortos. 

No sábado, estrondos, pancadas de chuva e enxurrada foram o sinal de alerta para deixar o imóvel de um amigo, num condomínio de classe média alta. Julia Arriero de Souza e o namorado Flávio Lobo pressentiram que era perigoso ficar e decidiram voltar para a casa, no domingo de manhã, mas já encontraram todos os caminhos fechados. Barrancos tinham despencado, havia lama por todo lado e, sem sinal de internet, não dava para saber como estavam os acessos. Hotéis viraram refúgio e ficaram superlotados, e o comércio fechou.

No meio da destruição que e espalhava rapidamente, sem ter para onde ir e sem comida, o casal e mais dois amigos viveram horas de medo e incertezas, sob o temporal inclemente, vendo o corre-corre de pessoas desesperadas e de voluntários incansáveis, tudo de dentro do carro. Com sorte, escaparam da morte. Com a ajuda de uns, tiveram pernoite no pátio de um posto de gasolina, com direito à marmita feita por uma voluntária, e, dada a ganância de outros, desembolsaram R$ 144 por quatro garrafinhas de água e dois pacotes de biscoito.

— Nós tivemos muita sorte. O que vimos foi muito pior, tudo muito triste, imagens inesquecíveis — diz Julia. — Quando a gente conseguiu sair de lá (da casa), a gente foi para a rua. Assim que saímos, deslizou a estrada e não conseguíamos voltar para a casa onde estávamos e nem era seguro. Era domingo e não conseguimos lugar para ficar. Os hotéis estavam lotados, as pousadas todas estavam inundadas. Nós ficamos na rua. Estávamos sem alimento e sem água. Na segunda-feira de manhã, vinte e quatro horas depois, a gente conseguiu chegar à Barra do Sahy. Só tinha um estabelecimento aberto. Fomos comprar água, aqueles fardinhos com garrafinhas de 300 ml, dava um total de quatro litros. Pegamos dois pacotes de salgadinhos, pequenos, que normalmente vendem para o pessoal levar para a praia. Na hora de pagar, eles só aceitavam PIX porque não tinha energia para passar cartão e não queriam dinheiro também. Na hora de pagar, eles disseram que era R$ 87,50 a água, para ser exato, e o total, com os dois salgadinhos, dava R$ 144. A gente via que era sem base nenhuma. Eles olhavam para a gente e para o produto e davam um valor. Era assim. Eu fiquei roteando internet com outras pessoas que estavam sem sinal e vi gente pagando por seis pães quase R$ 60. Eles não forneciam nota fiscal, nada, e os produtos estavam sem preço nas prateleiras.

Sem teto e com fome e sede

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Assim como os quatro amigos, muitos turistas e mesmo moradores que ficaram sem casa ou tentavam deixar o local pagaram valores extorsivos em meio à tragédia para ter o que beber e comer. Julia, que já apresentou uma denúncia ao Procon, conta que não discutiu para pagar pelos itens porque já estavam há 24h sem água e comida. Ao ver a situação de outras famílias à sua volta, algumas com menos condições financeiras, ela não bebeu toda a água, usou apenas o suficiente para aliviar e sede e doou parte das garrafinhas restantes.

— Como já fazia vinte e quatro horas que estávamos sem acesso à água e à comida, acabamos pagando sem nem pensar. Para gente o problema na hora não era o dinheiro, era a falta dos produtos. Do lado de fora do estabelecimento, tinha gente coberta de barro, pedindo água, e a gente acabou dando parte da nossa água porque nós sabíamos que elas não iam ter a mesma condição de comprar — recorda-se ainda indignada com a prática de preços abusivos que vem sendo alvo de operações do Procon e da Polícia Civil - cinco estabelecimentos já foram autuados em Maresias e Paúba.

Os quatro amigos se viram ilhados, sem ter como sair de onde estavam e sequer onde ficar.

— Para qualquer lado que se tentasse ir, ou para Boiçucanga ou para Juquehy, não tinha como. A gente ficou num posto de combustível entre Barra do Sahy e Camburi. O dono do posto deixou a gente ficar lá, forneceu umas cadeiras, mesas, acolheu a gente ali. Mas não tinha combustível, não tinha energia, não tinha água, estava na mesma situação. Outros turistas chegaram ali e ficamos juntos. Nós saímos para buscar água e voltamos. Na segunda-feira, chegaram anjos lá, moradores da cidade que estavam se desdobrando para ajudar todo mundo. Uma moradora fez marmita na casa dela e levou para a gente. Nós começamos a ter um respaldo dos voluntários — conta Julia, que logo acrescenta: — A gente entendia que não era prioridade, estávamos bem. Eles estavam correndo atrás do pessoal que precisava ser resgatado. Era uma situação terrível. Estávamos muito apreensivos. Essa moradora (que fez as marmitas) ficou em contato com o Exército e com a Defesa Civil que nos escoltaram pelas estradas até que chegamos em São Paulo, na terça-feira (21/02), às 20h. Foi terrível. Vimos cenas que não saem das nossas cabeças.

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Enquanto Julia enfrentava com outros desalojados as agruras da devastação deixada pelo temporal, a mãe dela buscava desesperadamente informações. Sem internet e com sinal de telefone precário, elas se comunicaram também com a ajuda dos voluntários. Diretora de escola em Brauna, ela começou a mobilizar a cidade para arrecadar gêneros de primeira necessidade, sobretudo água, e material de limpeza para os desabrigados do litoral norte. Centenas de itens foram arrecadados em pouco tempo pela população do município para as vítimas das chuvas. Até agora, 54 pessoas morreram nas chuvas que caíram na região, a maior parte das vítimas em São Sebastião. Há ainda entre 30 a 40 desaparecidos, que podem estar soterrados, e mais de 1.500 pessoas, entre desabrigadas e desalojadas. Muitas delas estão em abrigos.