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Maurício Kubrusly: de quadro de sucesso no Fantástico a diagnóstico de demência, doc narra trajetória do repórter

Por O Globo 21/11/2024 15h03
Cena do documentário "Kubrusly: mistério sempre há de pintar por aí", do Globoplay - Foto: Reproduçãoar por aí", do Globoplay

Uma das cenas mais tocantes do documentário “Kubrusly: mistério sempre há de pintar por aí” é um encontro com Gilberto Gil. O tropicalista recebe Maurício Kubrusly tocando violão e o repórter, famoso pelo quadro “Me leva, Brasil”, apresentado entre 2000 e 2017 no Fantástico, da TV Globo, ensaia uns passinhos e tira a mulher, a arquiteta Beatriz Goulart, para dançar. Nos anos 1970, mais de uma década antes de estrear no vídeo, ele se firmou como um dos mais antenados críticos de música do país. Num texto, saudou as “ousadas e férteis inovações da arte de Gil”. O baiano lê essas linhas em voz alta e afirma: “Você que escreveu isso.” “Eu?”, surpreende-se Kubrusly. “Foi você, mas não foi você”, responde o doce bárbaro.

Diagnosticado com demência frontotemporal, Kubrusly não se lembra mais do que escreveu. Nem de Gil. A esposa é a única pessoa que ele ainda reconhece. No filme, o jornalista, hoje com 79 anos, redescobre sua trajetória junto com os espectadores. “Eu fiz muita coisa na vida”, exclama ele ao encontrar anotações antigas, de seu tempo de crítico musical.

O gosto pela música, que a doença não levou, é um dos fios condutores do filme, que terá sua première amanhã à noite, numa sala de cinema montada ao ar livre em São Miguel do Gostoso (RN), na abertura da 11ª Mostra de Cinema de Gostoso, evento gratuito que vai até o dia 26. Dirigido por Evelyn Kuriki e Caio Cavechini, o documentário chega ao Globoplay em 4 de dezembro.

O cineasta Eugenio Puppo, diretor da Mostra de Cinema de Gostoso, elogia a sensibilidade do filme, que não somente passa em revista a carreira do jornalista, mas também reúne cenas da sua intimidade, desde seu cotidiano no Sul da Bahia (onde vive hoje com Beatriz) a consultas médicas.

— Maurício Kubrusly marcou a TV brasileira com uma personalidade própria e um jeito irreverente de fazer reportagem — diz Puppo. — Ele sempre deu muita atenção à cultura, destacando músicos e bandas interessantes que surgiam, sobretudo, em São Paulo.

Num depoimento para o documentário, Luiz Tatit lembra que, entre os anos 1970 e 1980, Kubrusly foi o primeiro crítico a entender que músicos como ele, Itamar Assumpção e Arrigo Barnabé formavam um novo movimento, depois chamado de Vanguarda Paulistana. Gilberto Gil descreve o Kubrusly crítico como um “observador muito profundo da sensibilidade”.

Beatriz conta que sempre perguntavam ao marido se ele nunca quis ser músico, e a resposta costumava ser: “O meu instrumento é o ouvido.” Até hoje, ela diz a Gil, Kubrusly é o “DJ da casa”. Toda dia, ele escolhe uma trilha sonora diferente. “É como se fosse um programa de rádio”, brinca ela.

Nos anos 1980, Kubrusly comandou o programa “Senhor sucesso”, na Rádio Excelsior, de São Paulo, e não gostava de repetir música. Também foi crítico em jornais e editou a revista especializada Somtrês.

Maestro

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Evelyn Kuriki, que também assina o roteiro do filme, trabalhou ao lado de Kubrusly por 14 anos no Fantástico. Desde que o colega se afastou da TV, em 2019, ela recebe vídeos gravados por Beatriz que atestam como a música segue presente na vida dele, que aparece revirando CDs ou regendo o aparelho de som.

Cenas assim também surgem no documentário. Numa delas, aliás, está tocando “Esotérico”, de Gilberto Gil. De repente, Kubrusly se recorda da letra e canta junto os versos que inspiraram o título do filme: “Não adianta nem me abandonar/ Porque mistério sempre há de pintar por aí.”

Desde o início, diz Caio Cavechini, o objetivo era documentar as vivências de Kubrusly, e não apenas costurar depoimentos de figuras que assistiram de perto à trajetória dele. As gravações começaram em dezembro de 2023 e, com o passar dos dias, a câmera virou só mais um elemento da paisagem.

— A gente chegava e primeiro deixava a poeira baixar um pouco, até ele assimilar a nossa presença — explica o jornalista, que também dirigiu uma série documental sobre a vereadora carioca Marielle Franco, entre outros projetos. — Muito frequentemente ele interagia com a câmera, fazia graça. Ele nunca perdeu o jeito. Às vezes, a gente nem precisava perguntar nada e ele começava a falar. Em vários momentos, ele demonstrava estar consciente, mas sem entender por que merecia um documentário.

O filme acompanha diferentes fases da carreira de Maurício Kubrusly: mostra o jornalzinho que ele editou na infância, chamado O Mentiroso, e recupera sua primeira reportagem televisiva, sobre uma montagem da peça “Ubu rei”, de Alfred Jarry, com Rosi Campos. Nessa estreia, Kubrusly já ostentava a irreverência que o tornou célebre, metendo-se numa briga entre os personagens Mãe Ubu e Pai Ubu, como se fosse ele próprio um ator.

O doc destaca episódios marcantes do programa “Me leva, Brasil”, como a vez em que ele acompanhou um ensaio nu de Carla Perez no Pelourinho, em Salvador, e a história do homem que levantou do caixão no próprio enterro numa cidade alagoana.

Kubrusly resistiu a ir para a televisão. Quando começou, ele nem tinha um aparelho em casa. Evelyn, que produzia o “Me leva, Brasil”, se lembra do colega como um repórter “obsessivo pela informação”.

— Kubrusly sempre foi um jornalista inquieto. O “Me leva, Brasil” nasceu desse sentimento — diz ela. — Ele era pura linguagem. Quando pegava o microfone, alguma coisa acontecia.

Livro em 2025

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No ano que vem, a vida do repórter vai virar livro. Alberto Villas, outro contemporâneo dele no Fantástico, vai publicar “Kubrusly, lembra?” pela Geração Editorial. Será uma mistura de biografia e almanaque. Um dos capítulos se chama “Papo tipo Pasquim”. Trata-se da transcrição de uma longa conversa (à moda do que fazia o Pasquim nos tempos da imprensa alternativa) na qual colegas de profissão rememoram episódios divertidos e insólitos protagonizados pelo jornalista. Um deles revela que, quando fazia muito calor na redação do Jornal da Tarde, Kubrusly tirava a camisa sem a menor cerimônia e seguia trabalhando de torso nu.

— Ele era muito debochado. Na revista Somtrês, eles recebiam discos para fazer crítica e colocavam para tocar na redação. Todo mundo dançava. Ele tinha muito estofo para escrever sobre música. Era aquele cara que você precisava ler, sabe? Sempre muito atualizado. Ele chegava à redação do Fantástico e falava: “Já ouviu o disco novo do Arnaldo Antunes?” — diz Villas, que durante a escrita da biografia foi vendo a memória do amigo se apagar.

Os diretores esperam que o filme “preste um serviço” a pessoas que não sabem bem como se relacionar com familiares e amigos que sofrem de demência e, como definiu Gilberto Gil, já não são mais eles mesmos. O modo como Beatriz lida com a doença do marido, diz Evelyn, pode inspirar e dar algum alento ao público.

— Diante de uma série de limitações, Bia tenta povoar o dia dele com coisas bonitas, o que já era uma característica dele, como alguém tão ligado à cultura — afirma ela. — No Brasil, temos uma população cada vez maior de pessoas que precisam de cuidados e, consequentemente, muita gente é jogada na função de cuidador sem nenhum preparo. Esperamos que essas pessoas se sintam iluminadas pelo filme e percebam que caminhos elas ainda podem trilhar ao lado desses entes queridos.